Tese de Doutorado da Psicologia da PUC-Campinas analisa diagnóstico de autismo em adultos
Muitas pessoas descobrem autismo ao levarem seus filhos para avaliações
Uma pesquisa de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia estudou casos de adultos que foram diagnosticados como autistas. A tese, orientada pela Profa. Dra. Vera Engler e defendida em 2020, resultou em um trabalho mais amplo realizado pela pesquisadora Gisella Mouta Fadda. Atualmente, ela atende pacientes virtualmente e criou grupos terapêuticos para pessoas acima de 18 anos.
Ela conta que logo que defendeu sua tese começou a pandemia, por isso começou a realizar atendimentos virtuais. Primeiro foi com a psicoterapia individual, depois começaram a chegar casos para psicodiagnóstico e, posteriormente, foi ampliando para grupos terapêuticos e psicoterapia em grupo quando percebeu a necessidade deles de compartilhar livremente suas vivências num ambiente virtual seguro, sem serem julgados, podendo ser compreendidos de imediato e sentindo-se pertencentes com seus semelhantes.
Mensalmente, esses grupos se encontram por meio de uma plataforma virtual para falarmos sobre temas do interesse e diariamente, trocam mensagens. A Dra. Gisella falou sobre os casos de autismo em adultos, o aprimoramento dos diagnósticos e como muitos pais descobrem atualmente que têm características de autismo quando levam seus filhos para serem avaliados por especialistas.
Em sua tese de doutorado, o tema do autismo na fase adulta foi central. Quais foram suas principais conclusões e quais os resultados mais relevantes da pesquisa?
Quando me interessei em conhecer sobre o TEA, sempre quis conhecer a partir de quem vivia o autismo. Queria ouvir essas pessoas autistas e na fase adulta, queria saber como foi a vida delas, o que elas vivenciaram até aqui e, com isso, poderíamos pensar em possibilidades terapêuticas. Encontrei pouquíssimos livros escritos por autistas estrangeiros e apenas um brasileiro que narravam suas vidas. Esse foi meu ponto de partida para compreender aquilo que vivenciavam.
Alguns anos transcorreram para que eu amadurecesse como pesquisadora e como clínica para saber realmente ouvi-los. E, finalmente, no doutorado, aconteceu o que tanto ansiava, conversar face a face com adultos autistas de variados níveis de suporte. Por meio de um encontro, sem definir perguntas e respostas, os participantes da pesquisa puderam mostrar-se como eram, quais seus interesses e como agiam para se relacionar com uma pessoa como eu que não era do convívio deles, que não lhes era familiar.
Realizar a pesquisa de doutorado com a metodologia proposta pelo grupo de trabalho orientado pela Profa. Vera Cury da PUC-Campinas me possibilitou ir além do meramente observável e já posto para poder mergulhar nas vivências dos autistas compreendendo como se constitui sua estrutura psíquica. O resultado mais relevante foi compreender como se dá a vivência do autista no nosso mundo, pois nenhum transtorno acontece por si só, sempre acontece nas relações com o mundo.
No caso dos autistas, um mundo por vezes tão complexo que frequentemente precisam de tecla “sap” para traduzir o que está acontecendo de forma implícita uma vez que eles têm dificuldades em captar de imediato o que está acontecendo na relação com o outro. É um mundo que, a todo momento, os invade e sobrecarrega com tantas informações sensoriais, objetivas e subjetivas. Sem que o corpo deles consiga descartar, filtrar ou interpretar essas informações que os consomem, sentem-se desorientados, cansados e irritados. Vivenciam um corpo que os arrastam para uma exaustão – que normalmente acontece na vida adulta, com o aumento de demandas universitárias, laborais e sociais. Não sem antes terem tentado de todas as formas possíveis e inimagináveis a uma pessoa comum, superarem-se à custa de muito sofrimento.
Os autistas vivenciam dois grandes desafios, habitar seu corpo próprio e o impasse das relações interpessoais. O excesso de sensibilidades sensórias e suas reiteradas dificuldades de compreensão dos contextos não lhe fornecem uma expectativa estável do mundo. Essa permanente falta de familiaridade é o que rege todas as suas relações. Isso faz com que necessitem de padrões, de rotinas, de clareza nas trocas com o mundo para que construam alguma familiaridade que os ajudem a se organizarem e se sustentarem emocionalmente.
Daí decorrem seus comportamentos considerados socialmente estranhos. A aparente rigidez, as repetições, as buscas por estimulações corporais e o jeito de ser mais pragmático são tentativas de organizar algo que não entendem. E tudo isso, vivenciado diariamente sem pausas e descansos, é extremamente cansativo, levando-os, muitas das vezes, a um colapso.
Por outro lado, percebo que justamente por não captarem prontamente o nosso mundo, é onde há maiores possibilidades de se realizarem enquanto pessoas e criarem algo diferente do que está posto, beneficiando a todos nós. Para tanto, é imprescindível que recebam apoios corporais, ambientais, familiares e sociais dos quais necessitam em cada fase do seu desenvolvimento.
Terapeuticamente, podemos pensar em duas vias de tratamento, uma é na sociedade e outra, nos autistas. Primeiramente na sociedade, é necessário que compreendamos como podemos desenvolver a nossa “hospitalidade” para que eles possam e queiram estar no nosso mundo, compartilhando, somando. Em segundo lugar no autista, é necessário ajuda-los a “habitarem-se”, a compreenderem o que lhes acontece e assim, poderem realizar as suas escolhas a partir de quem são e não, tentando copiar um “modelo de habitar” nesse mundo comum que lhes foi imposto e só os adoece.
Em suma, todos nós devemos aprender a hospedar o diferente ao mesmo tempo em que o autista aprende a habitar-se. Importante ressaltar que essa é uma jornada que favorece a todos nós, não apenas a eles.
O autismo na fase adulta ainda é pouco estudado ou já há mais pesquisas nessa área?
No Brasil, o TEA na fase da adolescência, adulta e idosa ainda é pouco pesquisado se comparado com quantidade de pesquisas e tratamentos referentes à infância. Em outros países, em especial do hemisfério norte, há fascículos de revistas científicas dedicadas ao autismo adulto, ainda que o tratamento pensado para eles seja apenas medicamentoso.
É imprescindível que façamos mais pesquisas no Brasil uma vez que o estilo da nossa cultura, de maior proximidade, de maior exigência na socialização e na eloquência impacta diretamente na vida dos autistas levando-os ao estresse extremo e a uma certeza de que não há espaços para eles no mundo. A vontade de sair desse mundo começa a surgir na pré-adolescência quando há o início da transição entre o ambiente mais acolhedor da família para o ambiente mais hostil da sociedade.
A mídia tem abordado o autismo cada vez com mais frequência. Há um crescimento nos casos nos últimos anos ou o que está ocorrendo é um aprimoramento das técnicas de diagnóstico?
Não há uma resposta definitiva a essa pergunta, porém podemos pensar em algumas variáveis que afetam esse resultado no aumento de diagnósticos. Observe que não usei o termo “aumento de casos” e sim, “aumento do número de diagnósticos”.
Uma dessas variáveis é o alargamento do entendimento do que poderia ser considerado como transtorno do espectro do autismo desde 2013, com a publicação do Manual de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (APA) e que terminou por orientar outros manuais e pesquisas ao redor do mundo.
Outra variável é o aumento do conhecimento sobre o tema, seja por parte de profissionais da saúde e educação, seja por parte das próprias pessoas autistas que começaram a compartilhar suas experiências nas redes sociais e que gerou identificação com outros autistas, levando-os a procurarem por um diagnóstico. Quando comecei nessa caminhada pouco mais de 10 anos atrás, não haviam autistas contando sobre si mesmos na internet. Os raros livros autobiográficos que encontrei já foi de grande ajuda para compreender, a partir deles mesmos, como era ser autista.
Diante disso tudo ainda temos mais uma questão. Será que podemos pensar no fator genético como uma variável? Ou seja, seria possível pensarmos num real “aumento dos casos” devido ao fator genético ligado à herdabilidade? Ainda não há respostas para essa pergunta.
Muitas dessas reportagens mostram que alguns pais descobrem sinais de autismo depois de adultos após levarem seus filhos para a realização de avaliações médicas. Isso é comum?
Sim, isso tem se tornado cada vez mais comum aqui no Brasil. Quando o(a) filho(a) recebe o diagnóstico, os pais ouvem dos profissionais como o(a) filho(a) autista pode se comportar, o que pode sentir e vivenciar no dia a dia, e nesse instante, percebem que sentem de forma muito semelhante ao filho, gerando um reconhecimento de suas próprias dificuldades ao longo da vida que foram ignoradas, menosprezadas ou rotuladas por nomes que atualmente seriam consideradas como bullying. É importante fazer uma avaliação para verificar se esses sinais de autismos estão relacionados a algumas características, porém sem atingir os critérios necessários para um diagnóstico, ou se realmente, trata-se também de um conjunto de sinais que em conjunto caracterizam o TEA, como aconteceu com o(a) filho(a).
Quais características podem indicar que a pessoa tem sintomas de autismo? Quais são as mais comuns em bebês e quais as comuns em adultos?
Atualmente falamos em dois grandes campos: 1. Dificuldades na interação social e na comunicação social e 2. Comportamentos considerados repetitivos e que seguem determinados padrões que não são usuais para as pessoas comuns. Todavia, não podemos considerar um diagnóstico de autismo apenas enumerando uma lista de características. Estar no TEA é muito mais do que preencher o maior número de itens de uma lista, é um jeito diverso de sentir, perceber e se relacionar que caracteriza essas pessoas desde os primeiros dias de vida no contato com o mundo.
Nos bebês vamos tentar identificar o desconforto corporal, a dificuldade de contato, a não reciprocidade de uma protoconversação, uma certa dessintonia no encontro. A cada fase de desenvolvimento vão se somando mais dificuldades derivadas dessas. Prefiro não falar em sinais e sintomas porque ser autista não é uma listagem de características, é um modo de sentir, perceber e agir diferenciado dos outros e que acarreta tantos impasses para viverem.
Atualmente você desenvolve um trabalho on-line com adultos com autismo. Ele foi resultado de seu doutorado? Como funciona esse serviço? Quem pode participar e o que deve fazer?
Eu já trabalhava com crianças autistas mas, foi a partir dos resultados do doutorado que compreendi a extensão daquilo que os adultos necessitavam e não obtinham. Entreguei minha tese numa semana e na outra o mundo já estava assolado com a pandemia da covid-19. Tudo se fechou. Restava-nos o contato virtual. Eu já atendia virtualmente desde 2018, mas eram pessoas comuns. Em 2020, unindo meu conhecimento recém adquirido ao que nos acontecia globalmente, comecei a atender adultos autistas que me encontraram nas redes sociais solicitando-me apoio.
Primeiro atendi com a psicoterapia individual, depois começaram a chegar casos para psicodiagnóstico e posteriormente, fui ampliando a possibilidade de grupos terapêuticos e psicoterapia em grupo quando percebi a necessidade deles de compartilhar livremente suas vivências num ambiente (virtual) seguro, sem serem julgados, podendo ser compreendidos de imediato e sentindo-se pertencentes com seus semelhantes. Mensalmente, nos encontramos por meio de uma plataforma virtual para falarmos sobre temas do interesse deles e diariamente, trocamos mensagens.
Esses grupos terapêuticos são para pessoas acima de 18 anos. Há ainda oficinas que realizo pontualmente acerca de artes, criação e conhecimento de si através do corpo. Contudo, mães de adolescentes começaram a me procurar para atender seus filhos, pois não encontravam suporte terapêutico adequado a essa idade. E voltamos ao mesmo ponto, como se tudo estivesse focado na infância: pesquisas, estudos, tratamentos e discussões. E as outras fases do desenvolvimento humano não existissem.
Devido a essa grande lacuna de conhecimento sobre o autismo ao longo da vida, criou-se, muito devido aos próprios autistas adultos, espaços para compartilharem, discutirem e receberam alguma ajuda. Porém, os adolescentes autistas estão ainda mais à margem dessa conscientização. Para dar suporte a esses pais, comecei então a atender virtualmente os adolescentes, na sua maioria, brasileiros residentes no exterior que ansiavam tratamentos mais centrados na necessidade do(a) filho(a) do que em aprendizagens de comportamentos socialmente aceitos e adequados. Em suma, meu trabalho clínico como psicóloga foi sendo construído devido à demanda que se apresentava. Assim, atualmente atendo autistas e suas famílias, bem como seu entorno (escola, universidade, trabalho etc) de modo presencial ou virtual, desde a primeira infância até idosos pensando sempre no que eles necessitam na fase de desenvolvimento que estão vivenciando.