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Preservação do patrimônio agroindustrial em Campinas

Em artigo recém-publicado, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo chama a atenção para importância de valorizar o patrimônio rural ligado ao ciclo do café

Por Patricia Mariuzzo

A origem da cidade de Campinas, que completou 246 anos no mês passado, está fortemente ligada à atividade agroindustrial. A antiga Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso, transformada em Vila de São Carlos em fins do século XVIII, teve grande impulso com a introdução do plantio de cana-de-açúcar e em seguida dos cafeeiros.

Vestígios materiais dessa história persistem na cidade: quatro fazendas históricas são tombadas pelo Condepacc (Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas), há duas tombadas pelo Condephaat (Conselho de Desenvolvimento do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Arquitetônico e Turístico do Estado de São Paulo) e uma pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Há ainda 29 estudos de tombamento de bens rurais sendo feito pelo Condepacc.

A professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas Renata Baesso Pereira se debruçou sobre o patrimônio agroindustrial de Campinas – especialmente aquele ligado à produção de café -, buscando entender os avanços e impasses na sua preservação. “Podemos definir o patrimônio agroindustrial como aquele que tem sua origem no meio rural, a partir do agenciamento de atividades de beneficiamento de matéria prima oriunda da agricultura”, explica Renata.

“É a produção de açúcar que consolida a formação do núcleo urbano de Campinas. São os agricultores, muitos donos de engenhos que assinam o pedido de elevação de Campinas à condição de Freguesia. Estradas foram abertas para o transporte do produto. O núcleo urbano se estrutura com capitais vindos das atividades rurais e isso é algo que se intensifica quando as lavouras de açúcar vão sendo gradualmente substituídas pelo café. Com o café chega também a ferrovia”, complementa a pesquisadora.

A pesquisa foi feita em parceria com a pesquisadora Milena Soto Suárez, da Universidad de Oriente, em Cuba, e publicada em julho na revista Patrimônio e Memória, da Unesp. O artigo traz os resultados de um estudo comparado do patrimônio ligado à produção do café em Campinas e Santiago de Cuba. Nas duas cidades, a produção de café foi introduzida para atender o mercado consumidor externo, utilizou mão-de-obra escrava e constituiu um ciclo econômico importante, que deixou vestígios materiais e culturais. No caso de Campinas, como afirma Renata Baesso, na segunda metade do século XIX, com 177 fazendas de café, a cidade assume posição de destaque na economia da então província de São Paulo. Foi esse complexo cafeeiro que trouxe para a região uma ampla rede ferroviária especialmente montada para transportar o café para o Porto de Santos, de onde seguia para a Europa.

A produção do café no Brasil transformava as fazendas em verdadeiros complexos agroindustriais, que incluíam diversas estruturas: o cafezal propriamente dito, as terras para cultivos de subsistência, o terreiro para lavar e secar os grãos, o armazém, a casa senhorial, as senzalas e, já no final do século XIX, as casas dos trabalhadores livres, em sua maioria, imigrantes europeus. “Nas fazendas de Campinas, em função da escassez de pedras, predominava o uso das técnicas e métodos tradicionais com a utilização da terra, nas formas de taipa de pilão e da taipa de mão associadas”, descreve Renata.

Vestígios materiais dessa técnica construtiva podem ser vistos em construções da Fazenda Mato Dentro, hoje parte do Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim; na Casa Grande da Tulha, propriedade particular nos arredores do Estádio do Guarani; e da Fazenda Pau D’Alho, as margens da Rodovia Campinas-Mogi Mirim. Ainda segundo a professora da PUC-Campinas, as casas dos senhores destacam-se entre as construções das fazendas: “seja pelo apuro técnico, construtivo e estético, seja pela mobília e objetos requintados ou pelos extensos jardins que cercavam os casarões”.

Na opinião da pesquisadora, o baixo reconhecimento do patrimônio agroindustrial de Campinas dificulta a compreensão de processos históricos ligados à sua origem. “A discussão do patrimônio cultural está de fato ligada à construção de identidades. A maneira como olhamos para o passado dificilmente é isenta de valores calcados no presente. Houve um tempo em que era comum associar o rural ao atraso, mas creio que esta posição precisa ser revista. O patrimônio agroindustrial também está ligado ao desenvolvimento de técnicas, máquinas, formas de produção que contaram com inovações no seu tempo”, pontua.

Proteção e reabilitação

A despeito da importância desse patrimônio, ele ainda é pouco valorizado. O número de bens classificados pelos órgãos de proteção é pequeno, ou seja, são poucos exemplares de fazendas tombadas em Campinas. O último inventário das fazendas históricas de Campinas, feito pelo Condephaat, é de 1973. O Condepacc tem 29 estudos de tombamento de bens rurais, ligados ao patrimônio agroindustrial do açúcar e do café, abertos desde 2005. O tombamento é o principal instrumento jurídico para proteção do patrimônio cultural, podendo ser aplicado pelos três entes federativos.

Além disso, o tombamento nem sempre se mostra eficiente como medida de proteção. O caso da Fazenda Mato Dentro é um exemplo. As tentativas de reabilitação do conjunto patrimonial, que incluíram o tombamento da sede em 1982, a criação do Parque Ecológico, a transferência da gestão para a Prefeitura de Campinas, a realização de um evento de decoração, não impediu que o conjunto siga fechado para o público e sem manutenção. “Mesmo estando dentro de um parque público, o que deveria facilitar o acesso a ele, esse patrimônio permanece invisível para a população”, lembra Renata. Mas, para ser bem-sucedida, a preservação do patrimônio tem que estar articulada com a sociedade.

Um projeto da Prefeitura para criar o Museu da Paz e o Centro de Educação, Memória, Estudo e Cultura Afro-Brasileiros na Fazenda Mato Dentro, em parceria com a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), é um indicador positivo na recuperação do espaço. Renata lembra que a Fazenda chegou a abrigar 200 escravizados na cultura de café. “O projeto de reuso contempla as demandas da comunidade pela organização de um centro de estudos da história do povo negro na cidade”, acredita.

Natureza e cultura

A pesquisadora da PUC-Campinas aponta, ainda, que boa parte do conjunto do patrimônio agroindustrial de Campinas pode se beneficiar de sua localização para buscar instrumentos de proteção mais efetivos. Das 29 fazendas em processo de tombamento pelo Condepacc, 17 estão localizadas na APA (Área de Preservação Ambiental) de Campinas, instituída por Lei Municipal em 2001. “No caso da APA de Campinas, o entendimento do patrimônio natural e cultural como recursos integrados parece ser o caminho mais viável”.

Para ela, trata-se de uma oportunidade de superar as classificações formais e estilísticas das fazendas isoladamente e buscar valorizar dimensões mais complexas da vida social, mediadas pelo patrimônio agroindustrial: memórias de técnicas produtivas e construtivas, o trabalho dos escravizados e sua resistência contra a escravidão, a exploração do trabalho assalariado.

O plano de manejo da área, no entanto, ainda está em fase de planejamento e poderia incluir a proteção e políticas de reuso para o patrimônio agroindustrial ali presente. “O desenvolvimento e implantação de um plano de manejo integrado que articule uma gestão inteligente dos recursos patrimoniais (culturais e ambientais) seria muito bem-vindo. O poder público, as universidades e a sociedade deveriam estar envolvidos nessa construção”, finaliza Renata.



Portal Puc-Campinas
3 de setembro de 2020