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A descabida argumentação dos comparsas de Mengele motivou a comunidade médica internacional a criar um conjunto de normas éticas para regulamentar as pesquisas com seres humanos

* Prof. Dr. Carlos A. Zanotti

Entre os nazistas condenados no famoso Tribunal de Nuremberg, instituído logo que se encerrou a Segunda Guerra Mundial para julgar os crimes praticados pela ideologia racista do Terceiro Reich, muitos eram médicos que se diziam “pesquisadores”. Em sua defesa, alegavam que as atrocidades que cometeram em campos de concentração eram experimentos científicos que visavam aperfeiçoar procedimentos cirúrgicos, terapias comportamentais ou descobrir novos remédios. Tudo em “benefício da humanidade”, diziam, na tentativa de se livrar do enforcamento ou da prisão perpétua que já tinham sido impostos aos líderes alemães condenados na etapa inicial do processo.

Um dos mais notórios “pesquisadores” nazistas daquele período foi o médico Josef Mengele. Seus restos mortais, por sinal, foram localizados no Brasil e chegaram a passar por Campinas, em 1985, quando o legista Badan Palhares coordenou a reconstituição facial a partir do crânio daquele que ficou conhecido como um dos maiores carrascos do conflito. Antes de fugir para o Brasil, Mengele havia se refugiado na Argentina, onde praticou medicina, conforme se vê registrado no filme Wakolda, o médico alemão (2013), dirigido por Lucia Puenzo. Outra associação recente entre Brasil e Mengele pode ser encontrada também no longa-metragem Labirinto de mentiras (2015), produção alemã dirigida por Giulio Ricciareli.

A descabida argumentação dos comparsas de Mengele motivou a comunidade médica internacional a criar um conjunto de normas éticas para regulamentar as pesquisas com seres humanos. Trata-se do Código de Nuremberg, concebido em 1947. A intenção foi criminalizar qualquer tentativa de forçar cobaias humanas a se submeterem a experimentos que lhes trouxessem prejuízo físico, psíquico ou emocional. Vale lembrar que, nos campos de concentração de Dachau e Auschvitz, os judeus foram submetidos a experiências cruéis com gás mostarda, tifo, malária, bombas incendiárias e congelamento, entre outros. Em sua área preferida de “pesquisas”, Mengele fez experimentos com mais de 1500 gêmeos, dos quais apenas 200 teriam sobrevivido.

É desta atrocidade inimaginável que se disseminou pelo mundo científico a convicção de que o desenvolvimento da ciência precisa caminhar ao lado da autodeterminação dos sujeitos que se dispõem a participar como voluntários em pesquisas científicas. No caso brasileiro, a regulação do setor está a cargo da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), órgão subordinado ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), do Ministério da Saúde, com sede em Brasília.

Criada em 1996, a Conep conseguiu montar, nestes últimos vinte anos, uma extensa rede nacional de pesquisadores que colaboram, sem nenhuma remuneração, para com a observância do encaminhamento ético de pesquisas científicas envolvendo seres humanos no país. Com apoio desta rede e dos membros do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a Conep concebeu um dos códigos mais modernos do mundo para a avaliação e aprovação (ou não) de pesquisas envolvendo seres humanos. A avaliação dos projetos de pesquisa, mesmo aqueles do campo exclusivo da área médica, é hoje feita no Brasil de forma multidisciplinar. Advogados, psicólogos, sociólogos, antropólogos , médicos, dentistas e pessoas de várias outras formações, incluindo um representante da comunidade indígena e outro dos pacientes do SUS, integram o quadro de 30 membros titulares e outros 30 suplentes que compõe o plenário da Conep.

Todo mês, durante três dias seguidos, os membros da Conep se reúnem em Brasília para analisar os protocolos da chamada “área especial de pesquisa”, que necessitam de aprovação do órgão para serem desenvolvidos. Os projetos que não pertencem a esta área especial são avaliados por Comitês de Ética (CEPs) em suas localidades de origem. Ao todo, o Brasil conta atualmente com 765 comitês desta natureza, envolvendo o trabalho voluntário de pelo menos 11 mil pessoas, entre professores e pesquisadores. Para gerenciar e fazer transitar o enorme volume de dados gerados pelo sistema, entrou em funcionamento, em 2012, a chamada Plataforma Brasil, à qual mais de 225 mil projetos de pesquisa já foram submetidos, e onde 410 mil usuários estão cadastrados.

Muito embora se ouçam queixas de que a análise ética de projetos de pesquisa tenha tramitação excessivamente burocrática e demorada no Brasil, vale registrar que o sistema tem evoluído e se aperfeiçoado a largos passos, com a participação de pesquisadores de todo o país. A Plataforma Brasil, um enorme banco de dados ao qual todo cidadão tem acesso a informações não sigilosas de pesquisa, é um instrumento fundamental para possibilitar transparência e controle social dos estudos que envolvem seres humanos no país. Entende-se por dado sigiloso toda e qualquer informação que coloca em risco a proteção da identidade dos participantes de pesquisa.

A existência deste sistema nacional de avaliação ética, consolidada a partir da capilaridade obtida com os comitês locais, não é uma garantia de que não se cometam abusos em nome do conhecimento científico. Mas não deixa de ser uma alentadora evidência de que é possível manter otimismo em relação ao avanço registrado em nosso processo civilizatório.

* Carlos A. Zanotti é Professor da Faculdade de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Linguagens, Mídia e Artes (LIMIAR), da PUC-Campinas, onde é membro do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. É Mestre e Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e foi membro titular da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) no período 2012-2015.

 



Eduardo Vella
10 de agosto de 2016