Os desafios das mulheres no país do futebol
Pesquisadores da PUC-Campinas investigam quais as percepções de atletas do futebol feminino sobre esta carreira profissional
Bonecas para as meninas, bolas para os meninos. Há pouco tempo este era o padrão dos brinquedos que dividia as crianças em grupos, brincadeiras e que também acabava determinando diferentes processos de socialização que, por sua vez, ajudavam a consolidar a ideia de algumas práticas eram exclusivas para as meninas e outras para os meninos. O futebol é uma delas. Nos últimos anos, no entanto, este cenário tem mudado. A partir de 2019, por exemplo, todos os clubes da série A do Campeonato Brasileiro foram obrigados pela CBF a terem uma equipe feminina adulta e uma de base, que disputem ao menos um campeonato oficial.
Foi a partir da ampliação da participação das mulheres em um esporte que ocupa um espaço tão importante na cultura brasileira que a professora Tânia Maria José Aiello-Vaisberg e os pesquisadores, Annie Rangel Kopanakis e Gustavo Renan de Almeida da Silva, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Campinas, iniciaram um estudo sobre o imaginário coletivo de atletas do futebol feminino sobre esta carreira. Os resultados, publicados na última edição da Revista Estudos Feministas, mostraram que as atletas imaginam o futebol como caminho de superação da pobreza e desigualdade a partir do esforço pessoal, segundo adesão a crenças meritocráticas. Por outro lado, sentem-se atingidas por visões sexistas, que não concebem feminilidades e futebol como compatíveis, o que dificulta concretamente a vida profissional das jogadoras.
Para chegar a estes resultados, os pesquisadores fizeram uma entrevista psicológica coletiva com 18 atletas profissionais com idades entre 20 e 35 anos. A entrevista foi mediada pelo Procedimento de Desenho-Estória (PDE-T). Desenvolvido pela professora Tânia Aiello-Vaisberg, o método consiste em pedir que o participante faça um desenho sobre um tema ligado ao tema da investigação e, em seguida, crie uma história sobre a figura desenhada. De acordo com os pesquisadores, isso permite que o entrevistado se expresse livremente, trazendo elementos que ele desconhece em si mesmo.
O tema proposto foi “um jogador/jogadora de futebol” e as participantes tinham liberdade para escolher o gênero da figura. 14 entrevistadas desenharam mulheres jogadoras e quatro fizeram desenhos sobre homens. “Isso já mostrou que as atletas entrevistadas foram capazes de apresentar um imaginário correspondente à possibilidade de mulheres praticarem este esporte”, escreveram os pesquisadores.
Viver é lutar
Um dos campos de sentido que emergiu a partir das entrevistas realizadas foi o que viver é lutar. “Reconhecemos que o trabalho humano é importante para a manutenção da vida e da sociedade, bem como para o alcance de méritos e conquistas. No entanto, quando se desconsidera as condições concretas da vida humana, surgem visões simplistas e nocivas, como equiparar o fracasso à falta de esforço e dedicação, mesmo em situações em que existe, por exemplo, ausência de condições materiais e estruturais para que uma pessoa trabalhe, se empenhe e produza em sociedade”, afirmaram os pesquisadores. “Portanto, culpabiliza-se o indivíduo por problemas que são, na verdade, estruturais – o que isenta quem oprime e explora das responsabilidades acerca dessa conjuntura, ao passo que provoca, em quem é oprimido, sofrimentos emocionais importantes, como sentimentos de fracasso, culpa e vergonha”, complementaram eles.
Outra conclusão do estudo foi que as entrevistadas compartilham a percepção de que o “futebol salva”, isto é, uma fantasia de que a pobreza e a vulnerabilidade social podem ser superadas quando um membro da família se torna jogador de futebol. No imaginário dessas atletas, bens materiais dificilmente seriam conquistados sem uma grande fonte de renda. Nesse sentido, o futebol surge como uma salvação das condições de pobreza e de vulnerabilidade social. Esse tipo de percepção pode ser ilustrado por afirmações do tipo: “Através dele (futebol) estudo hoje e tenho condições de ajudar minha família a ter uma vida melhor”, feita por uma das participantes do estudo.
Coisa de homem?
O preconceito baseado na ideia de que futebol é um esporte para os homens ainda é muito presente no dia a dia das jogadoras. A desvalorização da mulher no futebol, a dificuldade de acessar o esporte profissional e a visão – discutível – de que o corpo feminino deve obedecer a um ideal estético e biológico que não corresponde ao esporte de alto rendimento foram mencionadas pelas participantes, confirmando como a vida social contemporânea é fortemente marcada pelas questões de gênero, que frequentemente geram sofrimento. No entanto, para os pesquisadores da PUC, a partir do momento em que se inserem em um contexto tradicionalmente masculino e sob fortes influências do capitalismo branco e cisheteropatriarcal, é possível dizer que existe uma subversão das normas de gênero. É importante lembrar que, há pouco tempo, as mulheres eram proibidas de jogar futebol no Brasil – esporte que não era considerado compatível com a “natureza feminina”, ligada à delicadeza, à beleza, à maternagem e ao cuidado. “A primeira coisa que devemos levar em conta quando falamos em normas de gênero é lembrar que elas são um modo de perpetuar a supremacia cisheteropatriarcal, motivo pelo qual devem ser desconstruídas caso queiramos uma sociedade igualitária. Quando as atletas transgridem essas normas, elas dão uma contribuição importante para uma transformação estrutural da sociedade”, acreditam eles.
São mudanças que podem ajudar a ampliar as possibilidades de mulheres que querem ser atletas de futebol e de outros esportes e mais, pode liberar meninas a brincarem do que quiserem brincar, sem limitações.
Por Patricia Mariuzzo / Foto: Agência Brasil